Viagem ao interior da noite


A viagem à noite do Porto (como à de outra qualquer cidade) assemelha-se a um documentário da vida selvagem. Por detrás do bar, entre os gins e as cervejas adivinha-se um Sir Richard Attenborough, cuja voz é dobrada, como sempre, pelo mítico Eduardo Rêgo: "Os machos disponíveis deambulam por entre as fêmeas, seleccionando-as pelos aparentes sinais de disponibilidade". Não há tempo nen paciência para um grau de conhecimento mais profundo (afinal foi disso que eles e elas fugiram). (Un)dress code e outros acabementos decorativos, junto com o "body language" destacam-se como anúncios de néon a cintilarem "temos vagas". Sorrisos alcoolizados em especial, fazem voltar a barbatana dorsal na direcção da presa. Aproximação sorrateira e sincronização aos movimentos da fêmea. Algumas palavras, que para serem audíveis são proferidas praticamente com a língua no canal auditivo, aumentam o nível da ameaça.
Até hoje, os cientistas ainda não identificaram que mensagem, passível de caber em algumas palavras, pode um espécimen adulto dizer a um desconhecido, avisado, para iniciar a segunda e mais arriscada fase da aproximação, sem que um deles ou ambos, não se desfaçam em risos por tão desajeitada e inútil tentativa de dizer outra coisa que não o óbvio.
E quando tudo parecia desastrosamente perdido, eis que a fêmea se contorce batendo alegremente as barbatanas. Afinal, valorizamos socialmente o hedonismo biológico.  
Chegados a este ponto, lembramos que a última espécie que se escarnecia as tentativas desajeitadas na obtenção dos favores do sexo oposto, acabou extinta.
Com a manhã, esta liça noturna dissolve-se em torradas, compras semanais, máquinas de roupa para estender, sopa para três dias, almoços de família, renovação de promissórias bancárias e o ranho dos filhos. Onde está a radiante aura de promessa de felicidade às 11.33 de todas as manhãs? Restam somente irrelevantes transeuntes perpétuos.
Sem tempo para mais, porque a noite e a vida acabam e a espécie é mais importante do que o indivíduo, a Natureza há-de sempre ser servida. Alguém para aperitivos?           

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